Leopardo negro, lobo vermelho é o primeiro livro da trilogia Dark Star, escrita pelo jamaicano Marlon James. O autor é publicado no Brasil pela editora Intrínseca e já esteve no país como convidado da Flip 2017 pela obra Breve histórias de sete assassinatos, que rendeu ao autor o prêmio Man Booker Prize de 2015.
A obra é uma fantasia adulta baseada na mitologia africana, e como mencionado pelo próprio James, foge da visão eurocêntrica de Tolkien e George R. R. Martin, por exemplo.
Nela acompanhamos o Rastreador – que possui um faro extremamente aguçado e sempre encontra coisas perdidas – em uma missão com um grupo desafeto e com personalidades fantásticas, para encontrarem um garoto misterioso. Durante a jornada, o Rastreador viaja de Norte a Sul, desbravando culturas diversas. Porém, questões o inquieta: Quem é esse menino? Qual a sua importância? Quem está mentindo? Ele começa uma investigação em um cenário surrealista dentro da mitologia africana, enquanto procura pelo menino misterioso.
Surrealista e visceral
a CRIANÇA ESTA MORTA. nÃO HÁ O QUE SABER.
É com esse incipit que Marlon James abre o livro, já trazendo o tom para o leitor e o surpreendendo, pois mesmo declarando o final, ainda há muito para contar, aliás são 782 páginas.
O primeiro capítulo se inicia com um interrogatório sobre a expedição à procura do menino misterioso. A história é contada pelo ponto de vista do Rastreador, que narra ao Inquisidor sua versão da missão, e flerta com a cronologia, em um vai e vem alucinante. Dividido em seis partes, com mapas feitos pelo próprio autor, o livro também conta com uma relação das personagens presentes em cada parte. São muitos!
Durante a narrativa, somos imersos em culturas diversas, potencializada por dialetos africanos. A narração de todo o livro é poética e o autor usa muitas metáforas – característica dos livros latino-americanos –, porém os diálogos são concisos, em resumo, reais, fugindo dos floreios que são ausentes nas conversas cotidianas.
A histórias tem um cenário surrealista, com diversos elementos fantásticos. Os seres vão desde metamorfos, até necromantes, mas tudo com um pano de fundo da mitologia africana. Além do surrealismo, também é visceral, com cenas de violência muito gráficas e perturbadoras.
Representatividade na mitologia africana
Marlon James passou quatro anos estudando a cultura e o folclore africano, viajou até o continente para retratar em seu livro com fidedignidade. A construção da narrativa é inteira baseada nisso. Não há a visão cristã de “bem e mal”, mas sim de personagens cinzas, reais.
O protagonista não é o grande salvador, ele apenas conta o seu ponto de vista. Essa ideia é presente na mitologia africana, onde os protagonistas podem até ser mentirosos e vai do leitor acreditar ou não e procurar a verdade. Pensando nisso, James definiu que seria uma trilogia, cada livro contando a mesma história com diferentes pontos de vistas, onde o leitor escolheria a verdade.
Além disso, o autor ainda trás a discussão de gêneros. As personagens possuem gêneros fluídos, chamadas de shoga, pois no folclore regional todos nascem com gêneros fluídos. “No começo, todos nós nascemos dois. […] Você é homem e é mulher, assim como uma menina é mulher e é homem.” Essa passagem do livro, também traz uma realidade cruel: a circuncisão feminina e masculina, de forma mais clara, mutilação.
Veredito
O autor, certa vez, disse que a trilogia seria um “Game of Thrones africano”, pois seria complexa, teria elementos fantásticos, além de sexo e violência. Ele não estava de todo errado, pois contempla esses itens, mas de uma forma bem diferente. Os conflitos políticos são explorados com parcimônia, assim como o aprofundamento dos elementos fantásticos.
São tantas culturas e locais, que ao tentar abordar tudo se tornam apenas passagens. Mas o protagonista tem excelente construção, além dos diálogos bem definidos e o ritmo da investigação. Os capítulos são longos, o que é um pouco cansativo e as duzentas primeiras páginas mais lentas, mas assim que a missão de inicia a narrativa se encontra e segue caminho.
A edição está belíssima! Em capa dura fosca, com verniz localizada, pintura trilateral, arte de capa original, com o famoso papel amarelinho em uma gramatura mais baixa, o que diminui o peso do livro. O preço de capa é R$99,90, o que é salgado, mas compreensível, visto que todas as indústrias estão com falta de insumos.
Marlon James traz um tom de narrativa único para essa fantasia adulta ousada. O livro foi negado pelas editoras estrangeiras, mas assim que publicado, os direitos de adaptação audiovisual foram comprados por nada menos que a produtora de Michael B. Jordan e agora é um bestseller do New York Times e finalista do National Book Award.
Com representatividade, mitologia, complexidade e excentricidade, Leopardo negro, lobo vermelho é um livro desafiador, ele exige muito do leitor, e que abriu portas para mais originalidade dentro da fantasia, além de driblar os críticos literários, que torcem o nariz para o gênero.
“Escrevo livros difíceis. Não subestimo o leitor. E já provei que são vendáveis” – Marlon james
Para finalizar, peço que olhe sua estante, conte quantos livros de autores negros têm. Depois, quantos livros LGBQIA+. Agora, reflita sobre a importância deste livro.
Material avaliado: cedido pela editora Intrínseca