O mal nosso de cada dia é um dos lançamentos da editora DarkSide Books, que estrategicamente publicou o livro antecedendo a estreia da adaptação da Netflix, que chegará em 16 de setembro com um elenco de peso, como mostramos aqui. A ficção visceral publicada no EUA em 2008, é escrita por Donald Ray Pollock, um ex-caminhoneiro que se tornou escritor quando atingiu a meia-idade, e ambientou as suas histórias em Ohio, lugar onde cresceu.
No interior do EUA, em Ohio, período pós-guerra, um veterano tenta lidar com os fantasmas do campo de batalha, enquanto vê sua esposa adoecer, e então negligencia seu filho. Em uma região aparentemente pacata e extremamente religiosa vivem personalidades corrompidas e cruéis, como um casal de serial killers, um xerife corrupto e um pastor nada ortodoxo, que dentro de 20 anos, terão as suas vidas entrelaçadas ao redor de Knockemstiff.
Antes de destrinchar o livro é importante alertar sobre gatilhos. A história é recheada deles, com cenas gráficas de extrema violência do começo ao fim.
Personagens palpáveis
A narrativa tem como foco os personagens, sem nenhum grande mistério a ser desvendado, apenas acompanhamos a rotina deles pelo período de 20 anos. A cidade Knockemstiff ganha um ar de personagem, como acontece no clássico brasileiro O Cortiço, são diversos acontecimentos no mesmo lugar e comunidade que acabam se interligando. Mas um deles é o fio condutor: Arvin Russell, o filho negligenciado do veterano de guerra, que conhecemos quando criança, até concluir a sua jornada que o faz esbarrar com todos as outras personalidades a quem somos apresentados, e é interessante a forma como o autor deixa as migalhas para a conclusão da história de Arvin desde o prólogo.
O livro é dividido em 7 partes e a cada uma delas pulamos tempo e/ou local, acompanhando diferentes perspectivas com uma escrita coloquial magistral, fluída e sem rodeios. A linguagem lembra o Chuck Palahniuk com todos os palavrões, mas apenas lembra mesmo, pois Pollock não engana o leitor como o Palahniuk, ele é extremamente honesto: sabemos quem são os assassinos em série, o xerife corrupto e o pedófilo, desde o início. O autor não quer desvendar os fatos, mas sim os personagens; destrinchar cada um deles. E preciso dizer: nenhum se salva.
É uma leitura extremamente desconfortável, com personagens desprezíveis que comentem atrocidades nauseantes e muito gráficas. Contém sacrifício de animais, estupro, homicídio e suicídio, por exemplo. E por mais que não pareça, esse constaste se justifica na construção de personagens, feita de forma primorosa pelo autor, que não choca apenas por chocar, mas para trazer a reflexão de que essas ações monstruosas são obras de humanos. Pollock arranca a máscara de monstros para revelar uma pessoa por detrás, com angústias e inseguranças, mas que vivem no limite do mal todos os dias. E é aí que mora o encantamento deste livro: os personagens palpáveis.
As circunstâncias
O livro é um retrato do interior do EUA em 1960, compreendendo o período pós-guerra com a ascensão hippie, e é interessante observar o impacto da guerra nos veteranos, o conservadorismo e o fanatismo religioso, que pauta quase todas as ações dos personagens, além de uma moralidade deturpada. São personagens majoritariamente homens e brancos extremamente hipócritas, racistas, homofóbicos e misóginos em um local onde a entidade religiosa é suja e a lei é um xerife corrupto; ou seja, o livro ofende. É diante dessas circunstâncias que Arvin cresce e toma suas decisões, que por mais que sejam por um motivo nobre, são condenáveis e injustificáveis e acredito que será esse o gancho que o filme explorará. Em circunstâncias similares, como você agiria para defender suas convicções e o que é certo?
Fora da zona de conforto
Com linguagem crua e sem representatividade, Pollock tira os monstros de seu pedestal do medo e os expõe como humanos, nos proporcionando criar uma reflexão sobre a contemporaneidade e o fanatismo religioso, falsa moral e conservadorismo presentes no texto. E por mais desconfortável e ofendida que eu, como mulher, tenha ficado, esse foi o livro que mais me trouxe reflexões e me tirou da zona de conforto até o momento, mesmo chocando, apresenta personagens sujos, mas construídos de forma perspicaz.
Com um título muito pertinente aliás, tem um projeto gráfico já conhecido da DarkSide Books, com capa dura, soft touch, verniz localizado, papel pólen (amarelado), com fitilho de marca página. Possui 304 páginas, foi traduzido por Paulo Raviere, e chegou ao mercado com o preço de capa de R$59,90 (já disponível na Amazon).
Nota: 4,5/5
Fique ligado n’O Megascópio! Em breve traremos a análise da adaptação da Netflix.